O FETICHE DA CARIDADE

      Passaram as comemorações de Natal; agora é Ano Novo. Como sempre, as festas de fim de ano cercam-se de uma etiqueta caridosa. De repente, é chique encenar uma pose de desprendimento e prodigalidade, afinal na temporada do Natal dar é mais importante do que receber. É assim que o espírito de Papai Noel toma conta do ambiente e perdura até que se apaguem os fogos do réveillon. Em pauta shows de confraternização, jogos de futebol beneficentes, gente chorando, astros fungando, duplas sertanejas cantando de mãos dadas, “socialites” empetecadas e muita publicidade condoída pedindo dinheiro para causas humanitárias.
      Ótimo que existam campanhas granjeando fundos para ajudar os pobres; ótimo que funcionem. No final da linha, um desprovido terá encontrado auxílio, remédio e agasalho e o mundo terá ficado um pouco menos selvagem, ainda que momentaneamente. Mas há um problema na crescente propaganda da caridade. O problema é que ela não rompe com o egoísmo, mas, paradoxalmente tende a reforçá-lo. Nesse sentido essa propaganda é deseducativa. O telespectador é instado a doar seus trocados menos pelos benefícios que proporcionará a outros e mais pelo prazer que experimentará ao fazer a doação. A caridade deixa de ter o sentido de repartir o que se tem com quem nada tem para tornar-se mecanismo obscuro de comprar sensações. “Você vai sentir-se maior e melhor…”, promete o anúncio de uma obra filantrópica. Portanto, doe e goze! Sai barato.
      É claro, não foi a publicidade que inventou a perversão invertida que há no gesto de quem dá migalhas aos fracos; ela apenas encontrou aí sua via de convencimento e sedução. Doar para ter prazer, longe de ser um modo de amar o próximo, trata-se de um recurso permitido para que se cultive o narcisismo, o mesmo narcisismo que há em ter um carro importado que o outro não tem, a gravata que o outro não tem, o cartão de crédito que o outro não tem.
Mas a perversão não fica por aí. Além de não tocar nas causas que fabricam as multidões de desvalidos, as campanhas de filantropia aproveitam-se da imagem dos sem privilégios para comover sua clientela de novos caridosos deslumbrados consigo mesmos. Transformam os necessitados na cenografia de um grande fetiche, que é o exato oposto da fraternidade; fraternidade é estar ao lado do outro como irmão, jamais como um superior que simplesmente entrega o que não lhe fará falta. Mas nisso também consiste o fetiche, em fazer parecer esmola o que deveria ser um direito. Como mensagem de Ano Novo, isso tudo é algo terrível.
      Gente da Melhor Qualidade, esta é uma crônica escrita por Eugênio Bucci na revista “Veja”, edição de Janeiro de 1998, que resolvi divulgar. Pensem, reflitam e tomem posição.
      A Bíblia nos ensina que “Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará”. (Mt 6 2-4).